A família, enquanto conceito, é viva, social e complexa, sendo constantemente moldada pelas mudanças históricas e culturais. Os formatos familiares variam de acordo com o tempo, as culturas, e os contextos sociais e raciais.
Quando uma família chega ao consultório, ela traz consigo essas transformações históricas e sociais. É nosso papel escutar “essa família” e entender as teias sociais e subjetivas que a atravessam. Não se trata de lidar com uma entidade fixa e universal, mas com uma configuração singular, imersa em marcas históricas, transgeracionais e sociais.
Essa família ocidental contemporânea — muitas vezes branca, heteronormativa, machista e de classe média — é fruto de uma construção histórica. A ideia da mulher como rainha do lar e do homem como provedor não é um acaso, mas sim o resultado de discursos sociais que ainda hoje atravessam as relações familiares e se refletem na clínica.
Quando recebemos uma família, devemos estar dispostas a abrir as “malas” que carregam suas vivências e histórias. Essas bagagens podem ser mais leves ou pesadas, limpas ou sujas, mas sempre trazem elementos que precisam ser explorados com cuidado e respeito.
A mãe contemporânea e suas bagagens
A condição da mulher no espaço familiar começa a se transformar no final do século XVIII, com os ideais igualitários e libertários. Contudo, na prática, pouco mudou: a mulher foi delegada ao espaço privado, enquanto os homens continuaram dominando o espaço público.
Essa mulher, agora associada ao papel de “Santa Mãe”, assumiu os cuidados com a prole em um contexto de alta mortalidade infantil e ausência de sentimento de infância. O discurso de que “uma mulher só é completa sendo mãe” surgiu nessa época, impondo à figura materna um peso de perfeição e sacralidade impossível de alcançar.
Com os movimentos de libertação das décadas de 1960 e 1970, a mulher começou a reivindicar espaço no mercado de trabalho e na vida pública. Mas a perversidade do discurso se adaptou: do “não pode trabalhar fora”, passou-se ao “deve trabalhar fora”. Hoje, a mulher é cobrada a ser profissional bem-sucedida, mãe dedicada, esposa presente, e ainda corresponder aos padrões estéticos e comportamentais.
Quando essas mães chegam à clínica, trazem consigo essa carga histórica e social, que precisa ser acolhida e compreendida sem julgamentos. É fundamental abrir mão do discurso que perpetua culpas e reconhecê-las como são: humanas e falíveis.
O pai contemporâneo e sua evolução
Historicamente, o cuidado com os filhos foi atribuído às mães. Essa realidade se reflete na clínica: são as mães, na maioria das vezes, que trazem os filhos às consultas, participam de reuniões escolares e cuidam da saúde das crianças.
Os pais que chegam à clínica ainda carregam, muitas vezes, marcas do machismo e dificuldades em assumir papéis de cuidado e afeto. No entanto, há uma mudança lenta em curso: vemos surgir homens que buscam um novo lugar na vida dos filhos, tentando romper com o modelo tradicional e assumir responsabilidades emocionais e práticas na criação.
Essa transição não é fácil e requer de nós, terapeutas, uma escuta atenta e acolhedora para ajudá-los a encontrar caminhos que façam sentido em sua vivência familiar.
O papel do terapeuta na escuta da família
Na escuta das famílias, cabe a nós:
- Reconhecer que não há “a família”, mas “esta família”, única em sua configuração e dinâmica;
- Escutar sem julgar, sem tentar consertar ou oferecer respostas prontas;
- Acolher os sintomas e angústias apresentados e ajudá-los a compreender o que fazer com essas questões.
Nossa função não é corrigir ou ensinar, mas oferecer um espaço de acolhimento e compreensão para que essas famílias possam lidar com suas vivências de maneira mais consciente e integrada.